terça-feira, 23 de março de 2010

Psicologia Humanistica 1

Psicologia Humanista: a história de um dilema
epistemológico

A Psicologia Humanista norte-americana surgiu há cerca de cinqüenta anos,
apresentando-se como uma terceira força capaz de fazer frente ao que julgava ser uma
desumanização determinista da imagem de ser humano promovida pelo Behaviorismo e
pela Psicanálise.

Apresentando sua versão do objeto da Psicologia como dotado de um
nível de liberdade, criatividade e pró-atividade, os principais representantes da Psicologia Humanista se recusaram a abandonar o método experimental, proclamando a sua abordagem como aderida à ciência moderna.

Assim inauguraram um novo dilema, que
tem acompanhado a história da Psicologia Humanista: deveria esta manter sua adesão
ao método científico que não se adequa a seu objeto de pesquisa ou transformar a
imagem de ciência que pratica para adequá-la à sua imagem de ser humano? Defende-se
aqui tese de que a Psicologia Humanista, mesmo com as adesões proclamadas de Maslow
e Rychlak, acabou por abandonar o método experimental para aderir a investigações
finalistas.
Desde seu surgimento no cenário psicológico como tentativa de constituição de uma
alternativa às abordagens behavioristas e psicanalíticas, a Psicologia Humanista norte-
americana se encontra enredada num dilema insolúvel, imposto pelo Positivismo à
Psicologia.

O dilema imposto por esta escola filosófica aos cientistas psicológicos é o da
pretensa obrigação de escolher entre duas alternativas, porque não dizer, catastróficas:
devem eles distorcer a imagem de homem para adequá-la ao método científico legado
pela ciência moderna ou, então, abandonarem a ciência moderna e criarem sua própria
versão idiossincrática de método de investigação, que se adeque a sua imagem de ser
humano.

A Psicologia Humanista herdou este dilema em um formato particular, que acompanha a
história da abordagem desde o seu surgimento. Tendo se decidido programaticamente a
não aceitar a distorção da imagem de ser humano para adequá-lo ao método científico,
ela no entanto proclamou igualmente sua adesão ao projeto da ciência moderna.

Assim,
a Psicologia Humanista historicamente não consegue se decidir entre manter sua adesão
ao método científico – que não se adequa a forma como define seu objeto de pesquisa
nem a maioria de seus interesses principais de investigação – ou buscar transformar a
imagem de ciência que pratica para adequá-la à sua imagem de ser humano.
Este artigo defende a tese de que apesar das sucessivas declarações de princípios de
seus dois principais nomes, Abraham Maslow e Joseph Rychlak, o resultado da
empreitada humanista na psicologia moderna foi de fato o abandono do método
científico.

Começará por uma breve definição deste movimento, suas raízes históricas,
abordará suas críticas ao modelo de Psicologia da primeira metade do século passado e
passará por sua definição do objeto de estudo desta disciplina. A partir de mais
cuidadosa descrição do dilema proposto, exporá então o transtorno epistemológico
provocado por este, a tentativa contemporânea de solução de Joseph Rychlak e
finalmente uma avaliação geral de sua consistência com o projeto da ciência moderna.

História da Psicologia Humanista

O movimento que desembocou no estabelecimento da Psicologia Humanista teve seu
início no ambiente acadêmico norte-americano do pós-guerra. Os líderes do movimento
humanista levantaram suas vozes contra a imagem de homem e de método científico
defendidas pelo Behaviorismo - dominante no campo da Psicologia experimental - e
contra a imagem de homem e de método terapêutico da Psicanálise - dominantes no
campo da psicoterapia.

Como afirma De Carvalho (1990), a oposição ao Behaviorismo foi a posição que, pelo
caminho da negação, mais contribuiu para o estabelecimento conceitual da Psicologia
Humanista. Os Humanistas caracterizam o Behaviorismo como uma teoria em que o
homem é visto como um ser inanimado, um organismo puramente reativo, "uma coisa
passiva perdida, sem responsabilidade por seu próprio comportamento" (p. 33). Assim, o
Behaviorismo veria o homem como um conjunto de respostas a estímulos, ou seja, uma
coleção de hábitos independentes. Frick (1973), em sua obra Psicologia Humanística,
ainda hoje referência obrigatória para quem estuda o movimento, acusa o Behaviorismo
de haver buscado criar uma visão limitada do homem. Diz ele:
Esta escola de Psicologia concebe o homem como uma
máquina complexa, com seu sistema fechado de
funções parciais e regularidade estática. O Homem está
construído sobre uma organização hierárquica de
estímulo-resposta, que leva a padrões previsíveis de
hábitos, e reforço é a palavra chave para o
desenvolvimento da personalidade (p. 17).
Os humanistas se rebelam contra o Behaviorismo se opondo a quatro pontos
fundamentais. Primeiro, não concordam com a pesquisa com animais como acesso a uma
compreensão adequada do ser humano. Como disse Bugental (1963), o ser humano não
é um rato branco maior, assim uma Psicologia baseada em dados animais excluiria aquilo
que deveria ser o objeto primeiro da Psicologia: os processos e experiências
distintamente humanos. Segundo, os humanistas exigem que os temas de pesquisa da
Psicologia não sejam escolhidos por sua adequação ao método experimental, e sim por
sua importância para o ser humano e relevância para o conhecimento psicológico.
Terceiro, opõem à concepção reativa e mecanicista behaviorista do ser humano uma
concepção proativa da natureza humana: os humanistas argumentam que a motivação
humana é intencional e auto-motivada. Por último, estes afirmam que ainda que fosse
possível ao Behaviorismo realizar um catálogo completo dos comportamentos humanos
Memorandum 12, abril/07
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP
ISSN 1676-1669
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possíveis, isto não ofereceria uma descrição adequada da natureza humana pois,
seguindo a sentença gestaltista, a pessoa é mais do que a soma de cada comportamento
isolado. Para os humanistas, o homem é um todo único e indivisível, é uma gestalt.
Mas a Psicologia Humanista não se constituiu somente como uma reação ao
Behaviorismo, mas também como uma reação à Psicanálise, que era considerada por
esta determinista, reducionista e dogmática. O foco das críticas dos psicólogos
humanistas era de novo a imagem de Homem, desta vez, a admitida pela Psicanálise.
Segundo eles, a visão da natureza humana em Freud era pessimista, fatalista e
excessivamente centrada no lado negro do ser humano. Como diz De Carvalho (1990),
os humanistas argumentavam que para Freud "nada além de destruição, incesto e
assassinato poderia se seguir se uma natureza básica humana encontrasse expressão
completa" (p. 34). Assim, ainda segundo De Carvalho, para Freud, a pessoa
permaneceria para sempre fixada em emoções originadas de traumas da infância. O
homem não seria nada além de um produto de poderosas pulsões de fundo biológico,
que se manifestariam de acordo com a história do passado de cada um.
Outra acusação que o humanismo fazia de modo geral à Psicanálise foi formulada
originalmente por aquele que é o nome mais representativo do movimento, Abraham
Maslow. Ele a acusa de estudar somente indivíduos perturbados: neuróticos e psicóticos.
Como disse Maslow (1963), "o estudo de espécimes aleijados, enfezados, imaturos e
patológicos só pode produzir uma Psicologia mutilada e uma filosofia frustrada" (p. 234).
A Psicologia deveria portanto se voltar para o estudo das qualidades e características
positivas do Homem, como a alegria, o altruísmo, a fruição estética, a satisfação ou o
êxtase. Enfim, psicólogos deveriam estudar o homem sadio, não a psicopatologia. Apesar
de conceder à obra freudiana um valor relativo por proporcionar uma revolucionária visão
da motivação humana, os humanistas como Frick (1973) consideram que a Psicanálise
estabeleceu fundamentos teóricos responsáveis pela disseminação de uma visão
pessimista do ser humano e de suas possibilidades.
A oposição feita pelo movimento da Psicologia Humanista ao Behaviorismo e à Psicanálise
teve como influências anteriores principais as obras do neuropsiquiatra Kurt Goldstein, da
Psicologia da Gestalt e de alguns dos primeiros teóricos da personalidade. Goldstein
exerceu poderosa influência sobre os psicólogos humanistas através de obras como The
Organism (1934) e Human Nature in the light of psychopathology (1940), baseadas em
sua pesquisa sobre a capacidade de reorganização do cérebro humano após lesões
cerebrais, feita com soldados feridos em combate. Nelas, Goldstein introduz conceitos
que seriam assimilados e desenvolvidos por psicólogos humanistas, como os de auto-
atualização e tendência ao crescimento, assim como sua visão holista do organismo
humano. Ele enfatiza em suas obras a visão de que o Organismo é um todo unificado,
afetado em sua totalidade pelo o que quer que aconteça em qualquer uma de suas
Outra influência importante da Psicologia Humanista é a Psicologia da Gestalt. Da mesma
forma que Goldstein, a Gestalt considera o homem como uma unidade irredutível onde
tudo está relacionado com tudo, e o todo é mais do que a soma de suas partes. É esse
espírito holista da Gestalt (assim como sua concepção do comportamento humano como
intencional) que foi assimilado pelo movimento.
Finalmente, não poderia deixar de citar os teóricos da personalidade e suas obras que,
segundo Smith (1990), com sua rejeição às premissas mecanicistas do Behaviorismo e
biológico-reducionistas da Psicanálise clássica, foram a base da qual emergiu a Psicologia
Humanista: Gordon Allport (1937) Personality: A Psychological Interpretation, Henry
Murray (1938) Explorations in Personality e Gardner Murphy (1947) Personality: A
Biosocial Approach to Origins and Structure.
Existem grandes resistências em se apontar um teórico como fundador da Psicologia
Humanista, tal como foram Watson para o Behaviorismo e Freud para a Psicanálise. Mas
o fato é que não se pode falar do surgimento da auto-denominada Terceira Força em
Psicologia sem atribuir o papel principal a Abraham Maslow, autor de obras clássicas
como Motivation and Personality (1963) e Toward a Psychology of Being (1968).
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De Carvalho (1990) nos relata que no fim dos anos 40, Maslow era reconhecido como um
talentoso psicólogo experimental, mas que devido a seus objetos de pesquisa não-
convencionais começava a ser marginalizado pela comunidade acadêmica, tendo por
exemplo dificuldades de publicar seus trabalhos no jornal da American Psychological
Association (APA).
Maslow estava acompanhado nessa discriminação por mais algumas pessoas que se
batiam contra o establishment behaviorista. Então começou a compilar uma lista de
correspondência com essas pessoas que em 1954 atingia 125 nomes. O objetivo dessa
rede de correspondência era a troca de trabalhos mimeografados entre eles, de modo a
divulgar entre si seus trabalhos. Maslow (1968) batizou posteriormente sua própria lista
de correspondência de Rede Eupsiquiana. Eis o que ele fala sobre esta:
Chamo-lhe Rede Eupsiquiana porque todos estes
grupos, organizações e revistas estão interessados em
ajudar o indivíduo para uma condição mais plenamente
humana, a sociedade a evoluir no sentido da sinergia e
da saúde, e todas as sociedades e todos os povos
tornarem-se um mundo e uma espécie (p. 275).
No começo dos anos 60, com a ajuda de Anthony Sutich, Maslow vai transformar essa
lista de correspondência na lista dos primeiros assinantes do Journal of Humanistic
Psychology (JHP), e poucos anos depois, na lista dos membros fundadores da American
Association for Humanistic Psychology (AAHP). Formando um conselho editorial que tinha
como membros, além de Abraham Maslow, Kurt Goldstein, Rollo May, Lewis Mumford,
Erich Fromm, Andras Angyal e Clark Moustakas; com Sutich como editor, o primeiro
número do JHP saiu na primavera de 1961. Logo se concluiu que os assinantes daquele
jornal precisavam de uma associação própria, a AAHP, que com James Bugental como
presidente nasceu na Filadélfia no verão de 1963, num encontro que teve 75
participantes.
O encontro seguinte da AAHP em setembro de 1964 já se realizou com cerca de 200
participantes, até que a emergência da Psicologia Humanista no cenário da ciência
psicológica se concretizou com uma conferência realizada em novembro do mesmo ano,
na cidade de Old Saybrook, Connecticut. Participaram dessa conferência os nomes mais
conhecidos entre os rebeldes contra o establishment: Maslow, Allport, Bugental, Carl
Rogers, May, Moustakas, Murphy e Murray entre outros.
Até essa conferência, a AAHP era pouco mais que um grupo de protesto, dividido como
afirma Bugental (1963) em duas posições distintas. Um queria definir a Psicologia
Humanista somente em termos do que ela não é. Outro reivindicava uma declaração de
princípios com definições programáticas propositivas. A primeira declaração da AAHP foi
uma tentativa de conciliação entre os dois grupos, adotando-se o artigo de Bugental
(1963) Humanistic Psychology: A New Breakthrough como declaração da própria
associação. Nele encontramos cinco postulados: (a) uma pessoa é mais que a soma de
suas partes; (b) Nós somos afetados por nossas relações com outras pessoas; (c) O ser
humano é consciente; (d) O ser humano possui livre-arbítrio; (e) O ser humano tem
intencionalidade.
Uma questão que não pode deixar de ser abordada neste breve histórico do surgimento
da Psicologia Humanista, é a da sua relação com o Existencialismo. De Carvalho (1990)
aponta para a inadequação de se ver a Psicologia Humanista como uma importação para
os Estados Unidos do Existencialismo europeu. Segundo ele, os principais proponentes da
Psicologia Humanista tomaram contato com o Existencialismo somente no final dos anos
50, quando seus pensamentos já estavam formados. Talvez isso possa ser questionado,
uma vez que através das obras The Meaning of Anxiety (1950) e Man's Search for
Himself (1953), Rollo May, um dos principais nomes do movimento, tenha introduzido as
idéias de Sören Kierkegaard e Martin Heidegger no pensamento psicológico norte-
americano. Mas o importante aqui é ressaltar que as duas correntes de pensamento
psicológico tem diferenças fundamentais. Psicólogos humanistas como Maslow (1963) por
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exemplo, criticam os traços anticientíficos e antibiológicos do Existencialismo, e
principalmente sua tendência ao niilismo desesperado (que ele atribui entre outros a
Nietzsche, considerando-o precursor do Existencialismo), à glorificação do nada (Sartre)
e à vivência da vida como absurdo sem sentido (Camus, Sartre).
Mas a crítica principal dos psicólogos humanistas como um todo ao Existencialismo, se
dirige a Sartre e sua proposição de que não existe qualquer essência ou realidade no
conceito de natureza humana, resultado do postulado de que no ser humano a existência
precede a essência. Os psicólogos humanistas acreditam que há uma essência comum à
espécie humana, e em geral também crêem que essa essência está alicerçada numa
base biológica.
Outro aspecto desta questão que merece citação aqui, é o da difusão da Logoterapia (ou
Análise Existencial) de Viktor Frankl no mesmo período do surgimento da Psicologia
Humanista. Em Fundamentos antropológicos da psicoterapia (1978) e Em busca de
sentido: um psicólogo no campo de concentração (1991) (obra clássica com muitas
diferentes edições a partir de sua publicação logo após o término da segunda guerra)
entre outros trabalhos, Frankl expressa posições muito semelhantes em termos de
imagem de homem e de críticas à Psicanálise e ao Behaviorismo. Progressivamente,
Frankl e os Humanistas se esforçaram por aparar as arestas de suas posições e se
aproximarem teoricamente. Esses esforços surtiram muitos efeitos, de modo que, no fim
de sua vida, década de noventa, Frankl fazia parte do conselho editorial do órgão mais
tradicional do movimento, o JHP, e se tornou conhecido como um dos principais nomes
do que já vinha sendo generalizadamente denominado psicoterapia existencial-
humanista.
O grande problema da Psicologia Humanista ainda hoje permanece sendo sua aparente
vocação para a indefinição em relação à Psicologia científica, além de sua confusão
conceitual. Fazendo piada sobre este último aspecto, o behaviorista Michael Wertheimer
(1978) nos diz que se pedirmos a dois humanistas para definir o que é a Psicologia
Humanista, obteremos pelo menos três definições mutuamente excludentes. Joseph
Rychlak é o maior pesquisador e formulador da Psicologia Humanista contemporânea. Em
Psychology of Rigorous Humanism (1988), ele faz uma tentativa de trazer a Psicologia
Humanista para os moldes da Psicologia científica acadêmica, atacando a tradição
lockeana dentro da Psicologia e contrapondo-a a uma visão kantiana da mesma, onde se
reivindica o uso da teleologia na descrição do comportamento humano. Mas como é
possível conciliar uma investigação teleológica com o método científico experimental?
Pressupostos filosóficos da ciência moderna
É clara nos principais nomes da Psicologia Humanista norte-americana a reivindicação da
aderência de sua empreitada ao projeto da ciência moderna. Numa frase famosa,
Abraham Maslow (1962/1968) assim expressa a profundidade de seu compromisso:
A ciência é o único meio que dispomos para enfiar a
verdade goela abaixo dos relutantes. Somente a ciência
pode superar as diferenças caracteriológicas no ser e
no crer. Somente a ciência pode progredir.(p.18)
Essa ciência que permitiria "enfiar a verdade goela abaixo dos relutantes" é para ele a
que permite ao menos uma aproximação do conhecimento universalmente válido e
empiricamente comprovável. É aquele modo de obtenção de conhecimento que aspira a
formular, mediante linguagens rigorosas e apropriadas (e sempre que possível
matemáticas), leis universais que expliquem, ainda que probabilisticamente, fenômenos
da realidade objetiva. Este ideal de conhecimento descrito acima pressupõe algumas
crenças sobre o objeto do conhecimento e sobre nossa capacidade de conhecer.
Estabelecem-se aqui cinco, que para o tipo de busca delimitado acima, são irredutíveis e
necessárias. Antes porém, quero aqui deixar claro que o objetivo deste trabalho não é a
discussão do conceito de ciência moderna, mas simplesmente a avaliação do quanto a
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abordagem humanista da psicologia adere a esta visão tradicional de ciência, que
continua hoje majoritariamente aceita em disciplinas como a Física ou a Biologia.
Voltando a questão das crenças que estão na base da ciência moderna, comecemos pela
primeira, que é a crença de que o objeto de investigação existe independentemente da
mente do observador. A isto chamaremos Realismo Ontológico. A segunda destas é a
crença na estabilidade, pelo menos em alguns de seus aspectos, do objeto que se
estuda, a isto chamaremos Regularidade do Objeto; a terceira é a crença de que através
do método adequado, podemos vir a conhecer algo sobre o objeto, a isto chamaremos
Otimismo Epistemológico; a quarta é a assunção das leis básicas da lógica clássica na
formulação de argumentos válidos, os Pressupostos Lógicos, e, por último e tão
fundamental quanto, a crença de que podemos representar adequada e estavelmente o
mundo através da linguagem, a isto chamaremos aqui, Representacionismo.
È preciso destacar aqui o segundo dos pressupostos citados acima, avaliando-o um pouco
mais cuidadosamente. Admitimos que o objeto tem que existir na realidade objetiva, de
forma independente de nossas crenças e vontade, pois caso contrário qualquer
investigação deste seria desprovida de sentido. Mas sua existência não basta para que
ele possa ser estudado pela ciência moderna. Uma vez que admitamos como explicações
científicas formulações de hipóteses causais, precisamos necessariamente assumir que o
objeto que está sendo contemplado com estas hipóteses, em ao menos algum de seus
aspectos, esteja submetido a leis. A atividade científica se caracteriza, em suma, pela
busca racional da descoberta das leis que governam um objeto particular.
A crença na regularidade do objeto está vinculada por sua vez ao determinismo e ao
naturalismo, que estão na base da ciência moderna desde Galileu Galilei. O determinismo
está usualmente identificado com o determinismo laplaceano, teoria que defende que
nada há no universo que não seja em tese rigorosamente previsível em termos das leis
básicas da Física. No entanto, é necessário ressaltar que o determinismo laplaceano ou
hard determinism (Robinson, 1985a) não é um pressuposto necessário da atividade
científica moderna. O que é necessário logicamente para a ciência moderna é somente o
pressuposto de que no mínimo em algum de seus aspectos o objeto investigado esteja
submetido a leis. Já o naturalismo é a crença num universo que se reduz à natureza,
governado por leis intemporais, fora do jugo de forças sobrenaturais, da magia, dos
deuses, do acaso ou do caos. É também uma crença profunda de que as formas
matemáticas governam o mundo, de que a natureza é estável e governada por leis
matemáticas, e portanto, passíveis de descoberta. Para o naturalismo, a natureza fala a
linguagem da matemática, e portanto só pode ser conhecida através dessa linguagem,
ou seja, de questões que lhe são corretamente colocadas através do método da
experimentação, a aplicação à experiência das leis da medida e da interpretação
matemática.
Assim, este é o pano de fundo em cima do qual de delineará o dilema que é o objeto
deste artigo. A ciência moderna pressupõe o princípio da regularidade do objeto, tanto
quanto o de sua possível quantificação. Mas, o objeto definido pelos humanistas como
objeto da Psicologia obedece estas características?
A imagem humanista do objeto da Psicologia
Podemos recorrer ao principal proponente da Psicologia Humanista, Abraham Maslow
(1968), para começarmos a definir a imagem de homem defendida por esta abordagem.
Este coloca claramente alguns pressupostos que fundamentam a Psicologia Humanista:
1 - Cada um de nós tem uma natureza interna
essencial, biologicamente alicerçada, a qual é, em certa
medida, “natural”, intrínseca, dada e, num certo
sentido limitado, invariável ou, pelo menos, invariante.
2 - A natureza interna de cada pessoa é, em parte,
singularmente sua e, em parte, universal na espécie.
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3 - É possível estudar cientificamente essa natureza
interna e descobrir a sua constituição (não inventar,
mas descobrir). (p. 27)
É importante esclarecer que o segundo postulado defende implicitamente que o ser
humano não é um ser absolutamente condicionado pelos fatores biológicos, psicológicos
e sociais que influenciam sua constituição. Já o primeiro, garante um domínio de
investigação no qual em tese poderiam ser estabelecidas leis naturais. Mas como
conciliar num corpo de teorias científicas os efeitos resultantes do segundo postulado
sobre o comportamento com as leis implícitas no primeiro e terceiro? Como predizer um
comportamento auto-orientado?
A Psicologia Humanista propõe a realização de uma revolução copernicana na abordagem
do objeto de estudo da Psicologia. Como afirma Amatuzzi (1989), a consideração do ser
humano em termos de causa e efeito, antecedente e conseqüente, parte e todo, por mais
cabível, correta ou verdadeira que possa ser, não dá conta do ser humano como um todo
em movimento. Ele argumenta que por mais que se tente explicar a causa do
comportamento humano, sempre ficará faltando a questão do sentido que o se precisa
dar à própria vida, sentido que humanistas como Amatuzzi consideram como o maior
desafio que se coloca para nós.
Sob o enfoque humanista, o ser humano aparece não como uma resultante de uma série
de coisas, mas como, fundamentalmente, o iniciante de uma série de coisas. O Homem
só aparece para o humanismo na questão do sentido, não na questão da causa
explicativa. O enfoque explicativo se refere ao Homem como resultado, como passado.
Não se refere ao Homem presente, desafiado por questões de sentido. Aqui temos a nova
formulação de um velho conflito em Psicologia, e este é o conflito apontado por muitos
autores, dentre eles Gordon Allport (1975), entre as tradições lockeana e leibniziana no
pensamento psicológico, ou Joseph Rychlak (1975), para quem somente o termo
leibniziana é substituído pelo termo kantiana. Como defende Allport (1955/1975), para a
tradição lockeana o Homem é considerado um ser passivo, um receptáculo de impressões
sensoriais que irá constituir seu intelecto. Esta é a teoria da white paper de Locke, que
faz seu o axioma aristotélico nihil est in intelectu quod prius non fuerit in sensu (nada há
no intelecto que antes não tenha passado pelos sentidos). Assim o Homem seria um ser
passivo atuando e se constituindo de acordo com os estímulos recebidos, sendo por eles
portanto, governado.
Leibniz iria ironicamente, no combate aberto a essa visão de Homem, completar essa
sentença com o acréscimo nisi intellectus ipse (a não ser o próprio intelecto), ou seja, no
mínimo, antes daquilo que passou pelos sentidos, está na mente a própria capacidade de
assimilar e relacionar o material que é fornecido por estes, capacidade essa que não
pode ser dada pelos mesmos. Isto pode parecer óbvio, mas até hoje é motivo de disputa
para muitos psicólogos. Partindo de sua concepção de mônada, Leibniz qualifica o ser
humano como livre, ativo e orientado propositivamente. O ser humano é um foco de
atividade do universo, e não um mero objeto sofrendo a influência pura e simples das
leis físicas.
Assim, o enfoque humanista rompe com a tradição mecanicista-newtoniana e cerra
fileiras ao lado da tradição leibniziana da Psicologia (e de universo) e considera o ser
humano como autoconsciente, auto-orientado e criativo, em suma, possuidor de livre-
arbítrio. Como afirma De Carvalho (1990), a respeito da visão da Psicologia Humanista
sobre a natureza do ser humano, ela se caracteriza pela visão da pessoa como being-in-
the-process-of-becoming, ou seja, como ser em processo de tornar-se. A pessoa em seu
pleno funcionamento é proativa, autônoma, orientada por escolhas, adaptável e mutável,
em suma, é um ser num processo de contínua transformação. O ser humano para os
humanistas é um organismo único, com a habilidade para direcionar, escolher, e alterar
os motivos que guiam o projeto de seu curso de vida.
O dilema da Psicologia Humanista
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Temos aqui o problema central do posicionamento da Psicologia Humanista como ciência,
uma vez que o princípio da regularidade do objeto, de pelo menos algumas de suas
características, é pressuposto fundamental para a ciência moderna. Ou seja, a atividade
científica não pode prescindir daquilo que justamente a caracteriza: a descoberta de
funções na natureza, de relações estáveis de causa e efeito ou sistemas retro-
alimentativos estáveis. Uma vez que um ser humano livre e criativo não permitiria o
estabelecimento de tais relações, como fica a Psicologia em relação à ciência moderna?
Tal é o estatuto ontológico do objeto da Psicologia segundo os humanistas. Partindo
disto, os humanistas propõe que em última análise o sentido da experiência humana
deva ser o verdadeiro objeto de estudo da Psicologia. Eles propõem que o objetivo final
ideal da Psicologia Humanista é uma completa descrição do que significa estar vivo como
ser humano e da variedade de experiências que lhe são possíveis. O problema é que tal
tipo de objeto não só é ilimitado, como pouco claro e também inquantificável. Mas o que
os humanistas argumentam é que as alternativas de abordagens, tanto do Behaviorismo
quanto da Psicanálise, apresentam, como disse Maslow (1963), uma Psicologia mutilada,
inumana e estéril, cujos temas de pesquisa têm pouco ou nenhum significado para o ser
humano.
Os humanistas exigem que os temas de pesquisa da Psicologia não sejam escolhidos por
sua adequação ao método experimental, e sim por sua relevância para o ser humano e o
conhecimento psicológico. Desta forma todos os aspectos da experiência singularmente
humana se tornam temas de pesquisa para o psicólogo humanista. Entre eles podemos
destacar o amor, ódio, medo, angústia, esperança, felicidade, humor, amizade,
altruísmo, sentido da vida, responsabilidade, o morrer, criatividade, sentimento estético,
sonhos, empatia, metas, meditação, experiências paranormais, experiências místicas,
experiências culminantes, valores e sentimento moral. A maioria destes temas de
pesquisa não se encontra de forma alguma nos compêndios tradicionais de Psicologia,
porque não são passíveis de definição operacional, quantificação precisa e manipulação
laboratorial, ou ainda muitas das vezes, sequer passíveis de reprodução.
Aqui começamos a entrar nas conseqüências epistemológicas da posição ontológica da
Psicologia Humanista. Temos diante de nós duas questões. A primeira é a da dificuldade
de quantificação do objeto da Psicologia. O comportamento humano, objeto de estudo do
Behaviorismo, já apresenta muitas dificuldades de quantificação. O objeto de estudo da
Psicologia Humanista, sendo os processos e experiências distintamente humanos,
apresenta dificuldades maiores ainda. Como já foi exposto, a ciência moderna, à qual a
Psicologia Humanista pretende estar aderida, depende em alguma medida da
quantificação dos fenômenos que estuda. Mas o objeto da Psicologia Humanista (o
significado da experiência humana), não é passível de quantificação, ele somente possui
aspectos qualitativos. Por isso, os humanistas respondem não à pergunta de se será
realmente possível que algum dia o objeto de estudo da Psicologia vá se prestar à
quantificação e matematização.
A segunda dessas questões é acerca da complexidade do objeto de estudo da Psicologia
Humanista. De qualquer ângulo que se analise, o objeto de estudo da Psicologia é mais
complexo que os objetos de outras ciências. Se partirmos de um ponto de vista
materialista, reducionista, chegaríamos à conclusão que é preciso ter um conhecimento
profundo de química para entender a ação dos neurotransmissores, ação cuja
compreensão por sua vez, é necessária para se compreender o funcionamento neural, o
que, por sua vez, é necessário para se entender o altamente complexo funcionamento
cerebral, que por último seria a razão última do comportamento humano. A maneira pela
qual podemos avaliar a complexidade de uma ciência, é através do número de variáveis
intervenientes que atuam na determinação de alguma conseqüência sobre o objeto de
seu estudo. Se ao pensarmos de uma forma reducionista já podemos ter uma idéia do
nível de complexidade do objeto da Psicologia, que dirá se adotarmos uma perspectiva
humanista, para a qual o ser humano é livre e proativo, experimenta a emergência de
processos criativos e questões de sentido. Tal objeto, parece nos conduzir à
impossibilidade de investigação científica.
Memorandum 12, abril/07
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP
ISSN 1676-1669
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Castañon, G. A (2007). Psicologia humanista: a história de um dilema epistemológico.
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Em vista de todas essas características admitidas no objeto de estudo, uma solução
escolhida por muitos humanistas foi a rejeição ao método experimental. Wertz (1998)
por exemplo, chega a afirmar que a Psicologia Humanista só pode denominar-se
científica através do surgimento da Fenomenologia de Husserl, que procurou reformular o
significado do conceito de ciência para a Psicologia. Porém, a apropriação da filosofia de
Husserl pela Psicologia Humanista é na maior parte do tempo superficial e confusa, e
parece indicar que esta abordagem não compreende o sentido e o lugar da
Fenomenologia como teoria do conhecimento fundante, que antecede a própria Filosofia
da Ciência e não tem nada a oferecer diretamente a uma abordagem empírica do
fenômeno psicológico.
No entanto, a declaração transcrita acima de Wertz (1998) sugere mais uma vez o
dilema humanista, uma vez que os principais nomes do movimento como Maslow ou
Rychlak defendem firmemente a manutenção do método experimental como o teste de
hipóteses por excelência da Psicologia. O dilema é: deve a Psicologia Humanista alterar o
significado do termo ciência para adequar o seu objeto a ele, ou limitar o escopo de suas
investigações para adequá-las a ciência moderna? Cabe aqui lembrar a crítica efetuada
por um importante representante do humanismo na Psicologia, Amadeo Giorgi (1978), à
Psicologia Moderna representada então pelo Behaviorismo. Cabe no entanto aqui o
esclarecimento de que Giorgi nunca pertenceu à tradição experimental da Psicologia
Humanista norte americana. Em obra na qual tenta (e não consegue) estabelecer o
estatuto epistemológico da Psicologia como Ciência Humana e que tem como subtítulo,
Uma abordagem de base fenomenológica, Giorgi (1985) considera que o psicológico é
irredutível ao objetivo. A pesquisa objetiva (fundamentos fisiológicos, lógicos e sociais do
psicológico) é necessária mas não suficiente para compreender o psicológico. Este é
“para-objetivo” (1985, p.55), no entanto, legitima a investigação objetiva de suas
relações com o físico, o lógico e o social. Para Giorgi o psicológico deve ser entendido em
sua relação com o objetivo, não com especificações objetivas, pois é irredutível. Não é
surpresa no entanto que Giorgi não dê indicações epistemológicas e metodológicas claras
de como isto poderia ser feito (de fato, não especifica sequer sua posição ontológica). Ele
pergunta em sua obra, criticando o caráter dogmático que a Psicologia como ciência
positiva assumiu:
Não seria possível que a Psicologia tenha adotado uma
concepção errada de Ciência para imitar? Não será
possível que a Psicologia não tenha ainda esclarecido os
seus objetivos segundo as suas próprias condições? De
qualquer forma, não deveria a Psicologia pelo menos
levantar a questão abertamente, e então, ou responder
negativamente ou admitir que uma outra concepção de
Psicologia é igualmente possível ou até mesmo
preferível? (1978, p.19)
Que concepção epistemológica então?
Depois de respondermos à questão ontológica sobre a regularidade do objeto do
conhecimento, temos que nos deparar com a questão do método que dispomos para
investigá-lo. Caso admitíssemos a possibilidade de fenômenos únicos, irrepetíveis no
universo, e quiséssemos, ao invés de descobrir as leis que os regem, os compreender em
sua individualidade, o que poderíamos fazer com os instrumentos da ciência moderna?
Uma coisa são as ocorrências de casos particulares de uma lei geral, da qual eles são
somente a expressão; outra, são singularidades, casos únicos, irrepetíveis e não
submetidos em todos os seus aspectos a leis físicas. Esta pergunta, que foi a pergunta
básica de Wilhelm Dilthey (1833-1911), maior influência filosófica da Psicologia
Humanista, é que será abordada agora aqui, e que levanta a questão da distinção entre a
abordagem nomotética e a abordagem idiográfica nas ciências humanas.
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O principal foco da dispersão teórica na Psicologia é o problema da natureza do objeto de
estudo, o modelo antropológico a ser adotado. Essa questão é a da relativa autonomia ou
não do ser humano face aos condicionamentos biológicos, psicológicos e sociais a que ele
está exposto. É, portanto, a já citada questão do velho conflito apontado por Allport
(1975), entre as tradições lockeana e leibniziana, ou ainda por Rychlak (1988) entre as
tradições lockeana e kantiana no pensamento psicológico. A adoção de uma posição
alinhada a uma dessas tradições irá, evidentemente, condicionar o modelo de todas as
pesquisas feitas por quem a adote em Psicologia.
De modo geral, o tipo de pesquisa pode então ser concebido de dois modos básicos: ela
pode ser uma pesquisa de caráter nomotético ou de caráter idiográfico. A pesquisa
psicológica nomotética visa à obtenção de teorias e hipóteses de aplicação geral. Esta
pretensão se sustenta na crença ontológica da regularidade do objeto, ou seja, que
existam relações funcionais estáveis entre variáveis antecedentes e variáveis
conseqüentes. Já a pesquisa idiográfica parte da posição ontológica que assume a
relativa autonomia do objeto da Psicologia, o ser humano, frente aos condicionamentos
que lhe são impostos. Esta orientação de pesquisa pretende que o objetivo da
investigação psicológica seja a busca de compreensão do significado da experiência
humana, e não a busca de teorias e hipóteses de aplicação generalizada.
Em suma, a perspectiva nomotética busca explicar as causas do comportamento,
enquanto a perspectiva idiográfica busca compreender os motivos de sua expressão.
Trata-se de uma escolha entre explicar e compreender. Esta distinção de tipos de
pesquisa psicológica foi formulada pela primeira vez por Wilhelm Dilthey (1945), que
julga que as diferenças entre o objeto de pesquisa das ciências humanas e o das ciências
físicas pedem diferentes métodos de investigação e orientação. Com essas diferenças ele
não estava querendo dizer unicamente que o ser humano é racional e livre e que
entidades físicas não são. Ele estava querendo antes de qualquer coisa expor o fato de
que fenômenos físicos são externos à experiência do investigador e independentes uns
dos outros; enquanto os fenômenos psicológicos são interiores à experiência do cientista
e inextrincavelmente inter-relacionados uns aos outros. É antes de tudo por causa dessa
inextrincável inter-relação que Dilthey afirma que o fenômeno humano precisa ser
descrito e entendido em suas interconexões plenas de sentido. Assim, ele parte dessa
distinção entre os objetos de pesquisa das ciências físicas e das ciências humanas para
explicar a origem das duas orientações básicas de pesquisa na Psicologia, as quais ele
denomina explicativa e compreensiva.
Dilthey (1945) denomina explicativa ou construtiva, aquela abordagem de pesquisa
importada das ciências físicas, que visa à construção de um sistema de hipóteses com
um número limitado de elementos determinados, exatos, sem ambigüidades, além de
leis ou princípios universais regendo suas conexões, combinações e organização última.
As predições que podem portanto ser feitas sobre as relações entre variáveis são
submetidas a testes de verificação cujas inferências possam suportar as hipóteses gerais.
Os postulados do sistema, suas combinações, os princípios e processos governando suas
interconexões e organização e as predições dessas relações funcionais, são todas
construções hipotéticas.
Assim, explicativa é a abordagem do fenômeno humano pela ciência moderna, com seus
métodos nomotéticos de investigação. Dilthey (1945) considera que é um erro
fundamental adotar essa abordagem primariamente, quando não exclusivamente, na
Psicologia, uma vez que as experiências vividas são dadas em sua unidade, como um
todo significativo. Assim, os métodos através dos quais estudamos a vida psicológica, a
história e a sociedade devem ser diferentes daqueles que usamos para estudar a
natureza. Uma outra dificuldade que o humanista Wertz (1998) baseando-se em Dilthey
vê na abordagem explicativa em ciências humanas é que sempre se podem elaborar
diferentes hipóteses para explicar os dados empíricos colhidos. Além disso, tudo o que se
pode estabelecer com eles tem validade probabilística, e deduzir deles qualquer coisa em
relação a uma pessoa real é uma ação baseada numa indução que não tem sustentação
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Assim, segundo Wertz (1998), o conhecimento explicativo em Psicologia tem os
seguintes limites: a certeza que ele estabelece é sempre probabilística, sempre se pode
construir teorias e explicações alternativas para dar conta dos dados empíricos, e
principalmente, as questões principais que são aquelas relativas à natureza do fenômeno
humano não podem ser resolvidas de uma maneira convincente nem significativa. O
conhecimento adquirido dessa forma, acreditam os humanistas, permanece estéril e
incompleto.
Uma última observação necessária é a lembrança de que a estrutura de uma explicação
(dedutivo-nomológica) leva à predição. Se soubermos as leis da natureza e pudermos
controlar as condições do experimento, podemos prever (deduzir) com certeza seu
resultado. Logo, se o resultado não sai como o previsto, sabemos que necessariamente
ou alguma das leis consideradas é falsa ou alguma das condições necessárias não foram
controladas. É por isso que esta forma de explicação é o ideal moderno de explicação
científica.
Seguindo com a posição de Dilthey, agora sobre a abordagem compreensiva da
Psicologia, podemos afirmar que algumas das características da vida mental encontradas
por ele em sua análise foram sua unidade estrutural, seu desenvolvimento teleológico, a
centralidade da motivação e sentimentos e que membros dessa variedade de
constituintes da vida mental (como por exemplo representações e sentimentos) não
podem ser reduzidos um ao outro ou derivados uns dos outros, embora estejam sempre
envolvidos em interconexões intrínsecas. Assim, Dilthey (1945) rejeita a explicação
dedutivo-nomológica em Psicologia porque a consideração do ser humano em termos de
causa e efeito, antecedente e conseqüente, parte e todo, não daria conta deste em seu
significado antropológico superior. Por mais que se tente explicar a causa do
comportamento humano, sempre ficará faltando a questão do sentido, ou seja, a questão
fundamentalmente humana. E sentido e significado não se explicam, podemos apenas
tentar compreendê-los.
Assim o evento psicológico não poderia ser explicado, somente compreendido, pois teria
um caráter de singularidade e sentido que não é captado por qualquer tipo de tentativa
explicativa nomológico-dedutiva. Além de seguir a linha de Brentano denunciando o
caráter excessivamente especulativo do associacionismo, que seria baseado em um
conjunto muito extenso de hipóteses especulativas sem qualquer suporte empírico ou
experimental (Penna, 1991), Dilthey enfatiza sua crítica do caráter mutilador da
abordagem explicativa, que perde o que os fenômenos humanos têm de específico: seu
significado. Dilthey define significado como sendo o modo peculiar de relação que, dentro
da vida, guardam as partes com o todo. Penna (1991) expõe a diferença entre a
abordagem explicativa e a abordagem compreensiva tal qual Dilthey a vê, através de
uma metáfora sobre um quadro. Explicativamente, podemos abordar o fenômeno de um
quadro acumulando dados sobre o seu peso, dimensões, material de que são feitas a tela
e a moldura, tipo de tintas utilizadas, etc. Nada disso no entanto nos revelará sua
verdadeira razão de ser, seu sentido. Para termos essa revelação, precisamos adotar
uma atitude compreensiva. Todos os fenômenos psicológicos e humanos portanto se
caracterizariam por suas relações de sentido, e não físico-causais, portanto, teriam que
ser abordados por um método diferente.
Portanto, para Dilthey (1945) a hermenêutica deveria ser o método de investigação das
ciências humanas (ciências do espírito). Originalmente um método surgido para a
interpretação de textos canônicos (a Bíblia), a hermenêutica foi sendo adotada em
Filologia, Direito, História até chegar a sua forma contemporânea que surge da obra do
filósofo Hans-Georg Gadamer. Ela consiste numa tentativa de transformar a
hermenêutica, palavra que designa qualquer técnica de interpretação, num método geral
de interpretação. Para a hermenêutica o significado de qualquer produção cultural
humana (inclusive suas ações) nunca pode ser entendido sem considerar a rede de
significações relacionadas no seu ambiente cultural.
Para que a abordagem compreensiva, seja hermenêutica ou de qualquer outra natureza,
possa ser considerada científica, teríamos que reformular o significado deste conceito,
abandonando o característico da ciência moderna. Isso se dá porque, segundo este, a
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atividade científica se caracteriza pela descoberta de funções na natureza que revelam
poder preditivo, e uma abordagem compreensiva não tem qualquer semelhança com este
ideal de conhecimento, é retrospectiva e interpretativa.
Em suma, a polaridade existente entre as perspectivas explicativa e compreensiva
(chamadas por Smith, 1978, de causal e interpretativa) se caracteriza pela distinção de
entre
ciências
naturais
e
humanas
(Naturwissenschaften
e
Geisteswissenschaften), no contraste metodológico de Max Weber entre explicação e
compreensão, no contraste entre causas e razões, entre causas eficientes e causas finais
(teleológicas), entre comportamento e ação no sentido que tem essas palavras para o
senso comum, entre os termos comportamento e conduta, conforme definidos por Krüger
(1994). É, como conclui Smith (1978), o contraste entre uma explicação causal, que
tradicionalmente nasce de um ponto de vista exterior à pessoa que é o sujeito do
comportamento, e a compreensão interpretativa, tradicionalmente oriunda de um ponto
de vista interno à perspectiva da pessoa, plena de sentimentos, significados e valores.

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